PELA JANELA DO PASSADO


                      Dizem que o presente é apenas um buraco por onde se escoa todo o nosso futuro, transformando o presente em passado.

                        Como a maioria das pessoas de terceira idade, vivo mergulhado em um mundo de solidão, ungido pelo desalento do presente e sem qualquer perspectiva do futuro.  Aliás, de tanto preocupar-me com o futuro, tive um passado de sacrifícios e dissabores, nunca imaginando que pudesse ter um presente tão desastroso e melancólico.

                        Na mocidade, fui impetuoso, laborioso, destemido, valente e sonhador, como a maioria dos jovens.  Sempre acreditei nas pessoas, sempre encontrando boas desculpas pelas falhas e  atos de desumanidade cometido  pela criatura humana, pois sempre coloquei o amor  como o maior gesto de qualquer convivência humana e social.

                        Sempre fui um cumpridor dos meus deveres. Um homem comum, mas temente  à Deus e um respeitoso seguidor das Leis do meu País. Casei-me, um dia. Constituí minha família.  Tive poucos filhos, apenas três. Homens, como eu, naturalmente.  Sempre tive muito orgulho da minha família  e de todos os meus familiares.  Os amigos que tive sempre foram os melhores cidadãos da minha pequena e pacata cidade.  Trabalhei muito, em todo o meu passado. Fui lavrador, fui comerciante, fui transportador de bens e riquezas de norte a sul deste país. 

                    Sempre procurei dar o melhor para os meus filhos.  Fiz deles grandes doutores. Investi pesado em seus estudos.    Ao longo dos anos, consegui amontoar alguns bens. A fazenda que eu possuía, doei-a aos meus filhos.  Partilhei, anos atrás, tudo o que possuía entre eles.  Transmiti-lhes considerável fortuna, pois foi por isso que trabalhei com tanto afinco.

                        Mas tudo isto faz parte do meu passado.  E no presente o que sou?

                        Julgam-me apenas um velho, que vive debruçado na soleira da janela do meu passado.

                      O meu presente é repleto de desprezo e de inconseqüentes desaforos.

                        O tempo incumbiu-se de roubar as primazias de minha vida.

                        Tudo foi como um sonho. De repente acordei, no meio da noite e vi que estava quase só na imensa casa em que vivo.   Foram-se meus pais, irmãos, tios, primos e outros familiares.

                     Os verdadeiros amigos foram ficando pelas margens da estrada de nossas vidas. Há pouco perdi minha esposa, e, com ela foram sepultadas todas as minhas vontades e razões para viver.

                     Desde então, nunca mais tive vontade de sorrir, de conversar ou fazer qualquer reflexão em termos de presente ou de futuro.  Debrucei-me de vez nesta soleira ou portal de janela, onde não existe horizonte, somente uma penumbra com cenas do meu passado.

                        Vivo sentado numa velha cadeira de fios de nylon, pela calçada ou pelos cantos da casa de um dos filhos, que embora encontrando alguma resistência, por parte da esposa e seus filhos, resolveu acolher-me.

                     Não tenho com quem falar, clamar ou falar sobre o que fui ou o que sou.  Meus filhos não falam comigo, pois são pessoas muito importantes e ocupados pelos títulos e diplomas que os ajudei conseguir.  Não podem mesmo gastar seus preciosos minutos com um velho, quase decrépito e  matuto.

                        Minha nora finge que não existo, assim como meus netos, que tantas vezes, afugentei seus pesadelos e medos, com muito amor e carinho, hoje, sentem-se envergonhados do velho que dizem ser seu avô.  Parece que todos  sentem-se incomodados com minha  presença nesta casa.  Trago-lhes, sem querer, inúmeros aborrecimentos e constrangimentos.    Vivo perturbando tão lindas e amadas criaturas.

                     Até a minha tosse noturna, herança dos milhares de cigarros que fumei, consegue tirar-lhes o sono e irritar-lhes os dias.

                        Em meus longos anos de luta, por toda minha vida, nunca invejei ninguém. Hoje, sinto inveja do Bilu, o cachorrinho de estimação, pois ele sim merece toda a atenção e carinho dos residentes comigo.

                        Ao aproximar-se o Natal, tenho certeza que meu filho e minha nora conjeturam-se e até sofrem pelo fatídico desejo de presentear-me, pelos festejos natalícios.   Nesta época do ano, eu sempre  dava um lindo presente aos meus familiares, especialmente aos meus filhos.

                       Eu e minha esposa adorávamos presentear nossos filhos.

                        Hoje, vejo em seus olhos, que vivem remoendo de desejo em presentear-me também, não só no dia de Natal, mas todos os dias.  Parece ser um desejo latente naqueles que me rodeiam, presentear-me com o famoso “couro de boi”, da moda sertaneja.

                        Na vida cometi inconsciente, alguns pecados. E o maior deles foi esperar de alguém ou de algumas pessoas mais do que elas podiam dar.

                        Esperava que meus filhos pudessem dar-me guarida na velhice.

                     Mas isto é pedir demais, pois não depende só deles e também  de suas esposas ou de minhas noras.  Somente uma filha poderia fazer isso.  E eu não tive filha e nem quis adotar, como sempre pediu minha mulher, prenunciando o nosso  futuro.

                      Só agora sei o quanto é importante ter uma filha e a falta que ela faz.              

                      Sonho com minha mulher e com a filha que nunca tive.  

                      Sei que existem noras maravilhosas, que devotam suas vidas aos sogros ou às sogras.  Mas regra geral são sempre as filhas que estão dispostas a prestar socorros aos seus genitores.

                     Quase em delírio, sinto as suas presenças e como um acalento na minha imensa solidão.  Convidam-me a abandonar o meu canto, levantar da minha velha cadeira e bradar por todos cômodos da casa em que resido, de alto a baixo na rua onde moro, por todas as praças e jardins da cidade que ajudei  construir, que a velhice não pode ser vivida com indiferença e descaso, que os idosos merecem atenção, carinho, amor e respeito.  Que a velhice sempre será uma rica fonte de conhecimentos e experiências, onde os mais jovens devem deleitar-se em ensinamentos e exemplos de vida.                       

                        Mas faltam-me forças e razão para viver.  Por isso, continuo sentado em meu canto, quase sempre calado, debruçado na soleira da janela do meu passado, pois foi lá que apreciei os dons maravilhosos da vida, de ser respeitado, de ser ouvido, de amar e de ser amado.  Nada se compara a isto.

Dois esclarecimentos se fazem necessários em nossa crônica: primeiro - o velho de nossa narrativa não é fictício. Ele existe.  Segundo - você o conhece, convive com ele, na sua cidade, no seu bairro, na sua rua ou talvez dentro da sua própria casa.  Trate-o com carinho, pois ele é responsável por muitos dos bens que você desfruta e aprecia. O resto é mera coincidência.                

 

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